Após encaixar a última vianda no porta-malas do carro, ele olhou para os lados, desconfiado. Uma pequena flor amarela, da miúda árvore da calçada, caiu e pousou em cabeça, mas ele nem percebeu. Sua mulher esperava no banco do carona. Ele tentou dar a partida várias vezes sem sucesso antes do motor finalmente responder. Para a mulher, parecia que cada tentativa durava minutos. Quando a velha parati bege arranca, a desconfiança do motorista não cessa, tampouco o pavor de sua mulher. Ainda havia muito pela frente. Porém, não era aconselhável ter pressa – isso podia complicar ainda mais o trajeto.
Não sabiam se atingir a autoestrada era melhor por se misturar a um grande fluxo de veículos ou se era pior por ser uma via importante e, consequentemente, melhor fiscalizada. De qualquer forma, não adiantava discutir a respeito, pois era o único caminho que podiam pegar. Portanto, permaneceram calados.
Enquanto os quilômetros eram vencidos, o coração da mulher começava a se acalmar e bater mais devagar. Ele permanecia com a expressão fechada. Até que, de longe, avistaram uma movimentação estranha. Era uma blitz. Uma maldita blitz! Ele bateu no volante e esbravejou um palavrão. A mulher começou a suar frio e se lamentar, desesperada. O marido apenas lhe desferiu um olhar rude. Não precisou falar nada – ela entendeu o recado e tentou se acalmar.
Não havia nenhum desvio para escapar da polícia rodoviária. Os dois só podiam torcer para receberem as instruções de seguir em frente. Não aconteceu: o policial mandou encostar. A mulher ficou paralisada. A autoridade se aproximou:
– Bom dia.
– Bom dia. Algum problema?
– Apenas um procedimento padrão. Posso ver os seus documentos?
– Claro.
Tudo em ordem com os documentos. Ele tinha esperança de que fosse apenas isso. Foi quando o policial pediu:
– Vou pedir para que o senhor abra o porta-malas.
Ele engoliu seco.
– Ok…
Ela segurava o choro. Tentava rezar, mas só conseguia imaginar quão horrível seria a vida na prisão. Enquanto ele se dirigia à parte traseira do carro, tratava de se explicar e torcia para que o pior não acontecesse.
– Sou cozinheiro, estou levando algumas viandas com o que sobrou da janta de ontem. Um casamento dos grandes, sabe… Mais de quinhentos convidados. Ainda assim sobrou muita coisa.
Abriu o porta-malas e mostrou as viandas. O pior aconteceu:
– Pode abrir uma vianda para eu ver?
Ele ficou petrificado. Teve de pensar muito rápido.
– Certo… É uma comida exótica, do norte da índia. Eles comem umas coisas muito estranhas lá…
E abriu uma das viandas. O conteúdo era avermelhado e gosmento, apesar da textura consistente. Não parecia nada apetitoso e estava coberto por um molho de um vermelho muito vivo. Os pedaços da tal comida eram um pouco menores do que camarões. O cheiro era horrível.
– Tu serviu essa comida para os convidados?
– É uma iguaria muito apreciada em países orientais.
– Fecha isso de uma vez! O senhor está liberado.
– Ok…
As pernas ainda tremiam. Dessa vez, o carro deu a partida na primeira tentativa. O policial tentou consertar a grosseria:
– Tenha um bom dia.
– Obrigado! O senhor também. Bom trabalho.
E partiu. Em vinte minutos, alcançaram a estrada de chão. Em dez, chegaram no sítio. Tudo parecia seguro agora. Com expressões muito mais serenas, os dois ainda pensavam em alguma possível maneira de descobrirem o acontecido e o local onde estavam, mas ficavam satisfeitos por não encontrarem nenhuma hipótese verossímil.
A mulher estava visivelmente aliviada e apresentava na face um sorriso contido. Só então percebeu a pequena flor amarela, que agora se encontrava gola da camisa do marido. Tirou-a enquanto ele abria o porta-malas e retirava as viandas. Ela o ajudou e os dois entraram na velha casa, ignorando o guaipeca, feliz da vida ao revê-los.
Ele abre as viandas e deposita o conteúdo em inúmeros potes plásticos, que depois são alojados na geladeira. Ela não tem estômago para isso, então vai fazer qualquer outra coisa.
Quatro grandes viandas de cinco peças cada. Foi o necessário para transportar cada pedaço do corpo de Ramon Peixoto, que uma hora mais tarde seria declarado desaparecido pela família, em relato à polícia.
O casal podia descansar aliviado. Era impossível descobrirem.